sábado, novembro 27, 2010

ESTÁ NOS OLHOS


- Onde estão seu pai e sua mãe?
Caio era apenas um menino de 8 anos. Brincava na rua quando um homem lhe ofereceu uma bala. Ele não aceitou pois sua mãe pediu para não conversar nem aceitar nada de estranhos. O homem, porém não desistiu de importuná-lo.
Tirava fotos de longe de Caio brincando na praça. Aproveitava que a babá estava muito mais preocupada com seu irmão mais novo para tentar novas aproximações. Foi atrás dele na escola uma vez, dizendo-se um tio que há muito tempo não o via. As professoras, desconfiadas impediram o contato entre os dois. Depois disso, o homem desapareceu, nunca mais foi visto.
Alguns meses depois, Caio foi com os pais num parque da cidade. Estavam pai, mãe e filho na fila da roda gigante quando caio soltou as mãos da mãe e saiu correndo. A mãe assustada correu atrás do menino. Quando o alcançou, ele disse a ela;
- Olha que tanto de meninos, mamãe!
A mãe olhou e realmente eram fotos de crianças. Estava dianta de uma exposição intinerante de um fotógrafo iniciante. As fotos não mostravam o rosto das crianças, mas a mãe havia identificado Caio numa delas pelo gesto que foi fotografado: uma mão de criança com os dedos cruzados segurando um carrinho e empurrando-o contra um boneco. Era um gesto que ela já tinha visto o filho fazer outras vezes, principalmente o detalhe de cruzar os dedos.
A exposição mostrava crianças fazendo gestos, a principio agressivos, mas que não passavam de brincadeira de criança. O título era: "A maldade".

quinta-feira, novembro 25, 2010

O PIANO FRANCÊS


Aquele piano estava naquela casa fazia quase 120 anos. Já tinha vivido muitas histórias e já havia produzido muita melodia. Era, ainda, um instrumento imponente e recebia cuidados atenciosos que justificavam sua longa vida.
Viera da França como um presente para um menino de apenas 5 anos. Na época, os pais descobriram que o filho tinha um dom precoce para a música e quiseram incentiva-lo adquirindo tal instrumento. Quem sabe não seria ele o próximo gênio da música clássica mundial?
O piano foi muito utilizado até o menino completar 18 anos. Nesta época, ele se alistou no exército e quase abandonou a música. Tocava apenas quando estava de folga, para impressionar a namorada. Cinco anos depois, numa das batalhas, veio a falecer deixando sua mulher grávida de uma menina e um menino.
Os filhos nasceram e aos quinze anos a menina começou a se interessar pelo piano. No início, sua mãe não queria que ela tocasse. O piano lhe fazia lembrar o marido. Mas, depois de tanta insistência, a menina começou a receber aulas em casa. Ela tocava com tanta graciosidade que sempre era o centro das atenções, quando a mãe lhe pedia para tocar para alguma visita.
O seu professor de piano era um senhor de 58 anos que se apaixonou pela jovem aprendiz. A jovem não queria nada com ele. Estava interessada no filho da empregada, a quem ela ensinava algumas das lições aprendidas no piano, quando tinha tempo livre.
O irmão dela percebeu o envolvimento entre os dois e denunciou à mãe. Ela despediu a empregada, que foi embora levando o filho.
A moça passou a tocar músicas melancólicas ao piano até que, cinco meses depois, fugiu com o filho da empregada.
A mãe, muito desgostosa, queria queimar o piano, que só lhe trazia lembranças ruins. Seu filho, porém, não deixou que isso acontecesse. Afinal, era a única coisa de concreto que ele tinha a respeito do pai. Aquele piano, de uma certa forma, fazia parte da identidade daquela família.
Os anos se passaram e o rapaz tornou-se um estudante de filosofia. Conhecia muita gente e por influência dos amigos acabou entrando para o Partido Comunista. No ano seguinte, instaurou-se uma ditadura sobre o país e o piano, que estava esquecido há algum tempo, passou a ser novamente usado. Era tocado em reuniões clandestinas, que aos vizinhos pareciam festas realizadas na casa do rapaz.
Numa dessas reuniões, tiveram a ideia de usar um código para comunicação secreta utilizando partituras para piano. Assim, eram compostas no piano músicas que não faziam sentido musical, mas que tinham um significado oculto.
Em dois anos, os grupos resistência conseguiram se articular por meio das mensagens codificadas e derrubar o ditador. Assim, o nosso jovem estudante de filosofia se tornaria ministro da educação do novo governo.
O velho piano continuava na mesma sala de sempre e agora animava festas de verdade que contavam com a presença de embaixadores e pessoas do alto escalão. Numa dessas, a maestrina da orquestra da cidade se interessou em comprar o piano, mas o ministro não quis vender. A insistência dela não fez o ministro mudar de ideia, mas possibilitou que os dois conversassem bastante, se conhecessem e se apaixonassem.
Os três filhos dos dois cresceram em torno do piano. Todos aprenderam a tocar, mas nenhum tinha gosto em ser músico.
Somente o primeiro neto é que resolveu seguir carreira musical. E se tornou o maior pianista contemporâneo. Tocou com várias orquestras, correu o mundo, tornou-se um ícone.
Porém, infelizmente, faleceu aos 23 anos num trágico incêndio que consumiu também a casa da família e o velho piano francês. Apenas as lembranças dos amigos sobre as histórias do famoso pianista e seu piano ficaram a salvo do triste e ardido fim.

segunda-feira, novembro 22, 2010

AUDÁCIA


Estava um dia terrível. Um sol morno, num céu azul, poucas nuvens alvas, temperatura em torno dos 20 graus. Ninguém queria sair de casa, tamanho mau tempo. e para piorar as coisas, algo repulsivo estava acontecendo.

Todo mundo fechava as janelas com raiva. Aquilo não era possível. Uma menina de dez anos passava na rua em plena tarde escutando música clássica! Será que ela não tinha vergonha? Onde estariam os pais dessa menina? E quem diabos deu a ela um mini system que podia funcionar a pilha?

Ela dançava, como se estivesse num baile antigo, enquanto caminhava pela calçada. uma barbaridade. Quem teria ensinado tão imoral dança àquela pequena? Como se não bastasse, para completar a afronta, ela usava fitas coloridas no cabelo. Era preciso fazer alguma coisa.

Depois de longos e custosos 30 segundos, finalmente um carro da polícia apareceu e levou a menina para uma delegacia. Durante o interrogatório, ela não dizia nada, não respondia o que lhe era perguntado. Quanta audácia!

Resolveram que ela deveria receber a merecida pena de morte por overdose de gás do riso. Morreria sorrindo, sofrivelmente até perder as forças.

quarta-feira, novembro 17, 2010

A OUVINTE


Ela já havia passado dos cinquenta anos. Vivia sozinha em seu apartamento e não saia para praticamente nada. Era aposentada e apenas fazia as compras que precisava, assistia TV e ouvia os vizinhos.
Sim, seu passatempo favorito era ouvir os vizinhos. Escutava ruidos que vinham dos apartamentos próximos e ficava imaginando, através do barulho, o que estava acontecendo. Assim, surgiam histórias variadas.
Um chuveiro denunciava um banho para sair com a namorada. Barulhos de salto vindos do apartamento de cima contavam que a moça iria a uma festa nesta sexta-feira. Gritos e uma porta se batendo com força acusavam a briga do casal do andar de baixo. Pelos sons ela descobriu que o gato da síndica havia fugido e fora parar no apartamento ao lado, de onde o cachorro o fez sair rapidinho. Ouvira também o choro da nova vizinha da frente e descobrira que ela terminara o namoro.
Os sons preenchiam a vida dela. Seu ouvido também se tornara uma janela para o mundo. Tanto que fazia tempo que ela não escutava música no rádio, que era para ouvir possíveis ruidos que lhe trariam novas história.
Foi numa dessas que ela encontrou algo realmente notável. Uma voz daquelas de cantor lírico cantava trechos de uma ópera antiga da qual ela gostava muito. Passava, de vez em quando, pelo corredor no meio da tarde.
Ela resolvera, naquele dia, espiar pelo olho mágico e descobrir quem era o dono de tão bela voz quando ele passasse em frente a sua porta. Que surpresa: era o porteiro quem cantava enquanto entregava as correspondências!
Ela não tinha intimidade com ele, mas resolveu arriscar uma forma de, quem sabe, garantir uns segundos a mais de cantoria.
No dia seguinte, o porteiro passava no corredor no horário de sempre quando encontrou uma xícara de chá de erva-cidreira numa bandeja com biscoitos e um bilhete que dizia: "para o cantor de ópera". Num primeiro momento, ele ficou desconfiado e resolveu deixar tudo como encontrara. Mas no fim do dia a fome apertou e ele resolveu arriscar o desfrute do presente inesperado e anônimo.
Assim, todos os dias ela ficava escutando todos os ruidos e também trechos de óperas variadas. Assim, todos os dias ele passava cantarolando no corredor como a retribuir a adimiração recebida.
Um dia ele resolveu descobrir quem era que lhe preparava os agrados de cada dia. Resolveu investigar à sua forma: iria procurar pelo barulho de uma chaleira que estivesse ao fogo um pouco antes do horário habitual da entrega das correspondências. Se as paredes daquele prédio tivessem ouvido, elas haveriam de entregar a identidade da sua admiradora secreta!