quarta-feira, novembro 17, 2010

A OUVINTE


Ela já havia passado dos cinquenta anos. Vivia sozinha em seu apartamento e não saia para praticamente nada. Era aposentada e apenas fazia as compras que precisava, assistia TV e ouvia os vizinhos.
Sim, seu passatempo favorito era ouvir os vizinhos. Escutava ruidos que vinham dos apartamentos próximos e ficava imaginando, através do barulho, o que estava acontecendo. Assim, surgiam histórias variadas.
Um chuveiro denunciava um banho para sair com a namorada. Barulhos de salto vindos do apartamento de cima contavam que a moça iria a uma festa nesta sexta-feira. Gritos e uma porta se batendo com força acusavam a briga do casal do andar de baixo. Pelos sons ela descobriu que o gato da síndica havia fugido e fora parar no apartamento ao lado, de onde o cachorro o fez sair rapidinho. Ouvira também o choro da nova vizinha da frente e descobrira que ela terminara o namoro.
Os sons preenchiam a vida dela. Seu ouvido também se tornara uma janela para o mundo. Tanto que fazia tempo que ela não escutava música no rádio, que era para ouvir possíveis ruidos que lhe trariam novas história.
Foi numa dessas que ela encontrou algo realmente notável. Uma voz daquelas de cantor lírico cantava trechos de uma ópera antiga da qual ela gostava muito. Passava, de vez em quando, pelo corredor no meio da tarde.
Ela resolvera, naquele dia, espiar pelo olho mágico e descobrir quem era o dono de tão bela voz quando ele passasse em frente a sua porta. Que surpresa: era o porteiro quem cantava enquanto entregava as correspondências!
Ela não tinha intimidade com ele, mas resolveu arriscar uma forma de, quem sabe, garantir uns segundos a mais de cantoria.
No dia seguinte, o porteiro passava no corredor no horário de sempre quando encontrou uma xícara de chá de erva-cidreira numa bandeja com biscoitos e um bilhete que dizia: "para o cantor de ópera". Num primeiro momento, ele ficou desconfiado e resolveu deixar tudo como encontrara. Mas no fim do dia a fome apertou e ele resolveu arriscar o desfrute do presente inesperado e anônimo.
Assim, todos os dias ela ficava escutando todos os ruidos e também trechos de óperas variadas. Assim, todos os dias ele passava cantarolando no corredor como a retribuir a adimiração recebida.
Um dia ele resolveu descobrir quem era que lhe preparava os agrados de cada dia. Resolveu investigar à sua forma: iria procurar pelo barulho de uma chaleira que estivesse ao fogo um pouco antes do horário habitual da entrega das correspondências. Se as paredes daquele prédio tivessem ouvido, elas haveriam de entregar a identidade da sua admiradora secreta!

3 comentários:

Natália disse...

É... você realmente sabe prender o leitor. Queroooo mais!!!
Dá pra fazer "A OUVINTE PARTE II?".

hehehe

Adorei tudo.
Abração

Unknown disse...

Bom dia, Rapha!

Lendo seu texto, lembrei-me de um da Maria Valéria Rezende, do livro Vasto Mundo (lindíssimo).

Vou copiá-lo aqui pra você:

A vila

"Tantos pisam este chão
que ele talvez um dia se humanize."
Carlos Drummond de Andrade

Eu os conheço a todos. Reconheço-os pelas pisadas e por elas sei de seus humores, sentimentos, de suas urgências, prequiças, contentamento ou aflição. Se de sua grandeza e mesquinhez. Leio seus passos quando apenas roçam minhas lajes em corridas alegres de pés pequenos ou quando me oprimem com o peso de vidas inteiras. Foi seu tropel incessante que me despertou do meu sono de pedra. Só eu os conheço a todos porque só eu estou sempre neles como eles estão em mim. Eles me criaram e agora eu os crio. Não os posso fazer como eu os quisera, sempre formosos, felizes, generosos e livres, mas como mãe os crio, tais quais me viream, acolho-os. Sou seu chão. Vejo tudo e não os julgo, sei apenas que são humanos e me comovem. Pela linguagem de seus pés, vou desenhando suas histórias uma a uma. Creio ter compreendido que nisto consistem o serem humanos, em poderem ser narrados, cada um deles, como uma história. Quero-os como são porque quando eles deixarem de ser, tampouco eu serei.

Beijim

Rapha Vieira ou um dos seus alteregos disse...

Nossa, Nat! Que bacana que vc gostou tanto desse... uma pena que a peça é única... Bjs!

Pri, é claro que este texto que vc me enviou é MUUUUUUUUUITO melhor que o meu, mas se A Ouvinte te lembrou esse, fico muito feliz que minhas humildes linhas tenham resgatado grandiosa lembrança. Beijm procê tb!