quinta-feira, outubro 28, 2010

DAS ALMAS


Quem não acredita em vida após a morte?
Eles eram quatro amigos desde a adolescência. Naquela época, eram um bando de desajuizados. Viviam bebendo e farreando. Até aquela noite fatídica.
Como de costume, beberam muito, pegaram o carro do pai de um deles e sairam sem rumo. No meio do caminho, alguém teve a ideia de ir a uma cidade próxima e foram na direção do viaduto que ligava os dois municípios.
Dentro do carro, ouviam Mettalica, cantavam, bebiam e riam muito. E a velocidade só fazia aumentar.
De repente, enquanto zigue-zagueavam pela contramão já sobre o viaduto, um caminhão apareceu também a toda velocidade. O som forte da grave buzina ressoou nos ouvidos deles por alguns segundos, as luzes dos faróis cegaram a todos.
Naquele instante, cada um viu passar diante de si cada segundo de suas vidas. Gritaram com todas as forças, esquecendo-se, talvez, que o grito de nada adiantaria naquela hora.
Morreram todos naquele dia. Nenhum sobreviveu. O impacto fora muito forte. Todos renasceram no instante posterior, quando o caminhão passou a poucos milímetros do carro. Eram agora pessoas novas, renovadas pela quase- morte.
Exatos doze anos depois, souberam pela televisão que aquele viaduto seria desativado. Estavam construindo um acesso mais seguro entre as duas cidades. Decidiram então fazer uma última visita ao viaduto que havia matado os adolescentes irresponsáveis e que fez nascer os homens que se tornaram.
Entraram no carro de um deles e foram para lá, ouvindo no rádio uma música dos Beatles. Sorrisos serenos e papos relembrando os velhos tempos. Chegando a beira do viaduto, pararam o carro no acostamento e desceram para contemplar mudos o por-do-sol. Foi uma celebração à lembrança, à vida. Em frente estava o lendário viaduto, que seria implodido na próxima semana. Seria sempre o viaduto da morte. O viaduto da vida. O viaduto deles. Sim, era deles o viaduto. Era das almas que renascem.

segunda-feira, outubro 25, 2010

AMANHÃ OU DEPOIS


Ela queria muito pintar um quadro, mas naquela manhã já tinha um compromisso urgente. Ficaria para outra vez.
Passou um dia, uma semana, um mês, quase um ano! Porém, o desejo pela imagem não sumia. Tivera a ideia a partir de uma imagem que vira num sonho: uma pomba sobre a cabeça de um leão. O leão, por sua vez, sobre um edifício ao por-do-sol.
Pintaria no feriado prolongado, estava decidida. Porém, os filhos e o marido requisitaram toda sua atenção, enquanto o feriado lhe escapava por entre os dedos. Quem sabe nas férias...
Um ano, dois anos, dez anos, vinte anos se passaram. A inspiração já tinha ido embora, mas ela permanecia firme no intuito de fazer a pintura. Protelou tanto o quadro que a tela em branco que comprara danificou-se pelo tempo. Sua persistência porém a fez comprar outra tela.
Na semana seguinte, ficaria sozinha em casa durante a semana. O marido já havia falecido e os filhos já criados e com suas próprias famílias estariam ocupados. Além disso, tinha tirado uns dias de folga. Era a ocasião perfeita.
Decidiu fazer um chá de erva doce para ir tomando enquanto pintava. Ligou a televisão na cozinha enquanto esperava a água ferver.
Não acreditou no que seus olhos viam. Uma reportagem passava a respeito de um pintor que era considerado a última revelação dentro das artes, um novo gênio. Posava sorridente para as câmeras ao lado de sua obra prima. O quadro trazia uma pomba sobre a cabeça de um leão. O leão, por sua vez, sobre um edifício ao por-do-sol.

domingo, outubro 03, 2010

O ESTRANHO CASO DE UM AQUÁRIO E UMA MENINA


A menina rezou para chover. Temia que o rio se esvaziasse e faltasse água para o seus peixes do aquário. Ficava muito aflita quando a ração estava por acabar. Não queria passear, viajar, receosa do que poderia faltar aos seus peixes.
Passava horas olhando o aquário. Não por prazer em admirá-lo, mas para certificar-se de que nada saíra do controle. Com o dinheiro de sua mesada comprou duas bombas de ar para deixar de reserva, caso a que estava em uso estragasse.
Quando ela pediu aos pais um sistema de bateria para fazer funcionar a bomba de ar e a iluminação em caso de falta de energia elétrica, eles decidiram leva-la a um psicólogo.
Ela recusava qualquer intervenção da terapia. Acusava o profissional de querer destruir o amor que ela tinha ao seu precioso aquário.
Duas semanas depois, o primeiro peixe do aquário morreu. Apareceu pela manhã boiando, sem nenhuma explicação aparente.
A menina chorou muito por dias. Passou a vestir-se apenas de preto. Entrara num luto sem fim. Ficou conhecida pelo bairro como a viúva do peixe. E assim cresceu.

MINHA GRAMA


Aquele velhinho simpático que todo dia passeava em volta da fonte da praça principal às 8 horas da manhã estava atrasado. Mas vinha com um sorriso diferente e uma maleta à mão.
Parou de frente para o gramado e retirou de dentro da maleta uma toalha de mesa xadrez vermelha. Estendeu-a sobre o gramado e deitou por cima dela ficando com a nuca apoiada sobre as mãos. Ficou assim 20 minutos até que o guarda pediu para ele se levantar, pois era proibido deitar no gramado. O velho apenas sorriu ao se levantar, guardou a toalha na maleta e foi embora para casa.
Chegando em casa, preparou um chá de erva cidreira. Sorveu-o alegremente. Quando sua mulher o encontrou na cozinha, ele disse, animado:
- Minha velha, já sei o que é que me falta!
- Do que você está falando, homem de Deus?
- Vou destruir o jardim de frente de casa e vou plantar grama.
- Por que você vai fazer uma coisa dessas? O jardim está tão bonito e bem cuidado...
- O que eu preciso, na verdade, é de apenas grama. Quero ter minha grama verdinha, macia, que eu possa deitar para pegar sol, que eu veja crescer e precise cuidar melhor do que cuido dessas flores... Não quero todas as cores: o branco, o amarelo, o vermelho, o rosa, o roxo... O verde me basta!
"Pronto,! O homem enlouqueceu de vez!", pensou a velha. Mas achou melhor não dizer mais nada.
Ele passou o dia destruindo o velho jardim e preparando a terra para receber a grama. Cantarolava ou assoviava músicas que inventava naquele instante. Estava muito feliz. Pensava que o que fizera pela manhã foi um prelúdio de sua nova construção de felicidade.
Ele estava certo de que ninguém poderia compreendê-lo em sua escolha de trocar um jardim por um belo gramado. Apenas quem tem uma aguçada sensibilidade percebeu que a grama que sucedeu o jardim parecia mais alegre e mais bonita que seu antecessor. Apenas o velho percebeu que ali nascia uma grama mais verde e mais macia.