domingo, dezembro 04, 2011

ENVELOPE BRANCO



Ela estava andando pelo parque quando resolveu sentar-se em um banco para descansar um pouco e observar aquele espaço com calma.

Antes de sentar-se ali, observou o assento e notou que havia um envelope branco ali. O que haveria dentro dele? De quem seria? Resolveu abri-lo para decidir o que fazer com tal achado. Dentro encontrou um pequeno pedaço de papel preso por um clipe a um bilhete de loteria. No pequeno papel, era possível ler: "Este é um bilhete premiado. Receba-o como um presente, mas lembre-se de fazer um bem a mais alguém para não deixar essa ideia morrer."

Ela olhou bem para aquele bilhete e deu uma longa risada. Não podia acreditar naquilo. Porque alguém abandonaria um bilhete premiado no banco de um parque presenteando um estranho qualquer? Seria ela tão sortuda assim de encontrar algo tão bom que ela nem estava procurando?

Ela tinha certeza que aquele envelope não passava de uma brincadeira sem graça e até olhou para o lado para ver se conseguia enxergar alguém que deveria estar observando a sua reação e se divertindo as suas custas. Não viu ninguém, entretanto, conhecedora da capacidade das pessoas desse nosso mundo, rasgou aquele bilhete e jogou na lixeira ao lado.

Foi embora para casa e ao assistir o noticiário local, viu uma reportagem que dizia que o único ganhador do prêmio da loteria ainda não havia buscado o prêmio. Ficou atônita quando o repórter confirmou que o ganhador era da mesma cidade em que ela morava. Não teve coragem de contar a história para seu filho que chegou logo depois da aula.

Ele, um rapaz de 17 anos muito inteligente esforçado e sensível, logo percebeu que a mãe estava perturbada com algo. Ele perguntou o que havia acontecido, mas ela desconversou.

No outro dia, logo cedo, ela voltou ao parque procurando o tal bilhete na lixeira, mas não o encontrou. Não acreditou que havia literalmente jogado sua sorte no lixo. Chorou muito arrependida de ter desconfiado que alguém seria capaz de ter tal atitude. Afinal, aquilo parecia se tratar de uma espécie de corrente que pedia que a pessoa beneficiada apenas levasse algo de bom adiante.

Quando chegou em casa, resolveu que contaria a história ao filho. Sentou-se no sofá e viu que o tal ganhador do prêmio havia buscado o prêmio. O repórter informou que a demora em buscar o prêmio foi justificada porque o vencedor demorou a encontrar o bilhete premiado que estava guardado em seu armário.

domingo, novembro 27, 2011

NESTA ALTURA DA LEITURA


A que ponto cheguei?
(.?!,;:...)

sexta-feira, outubro 28, 2011

AMIGA INTRUSA


O meu eu lírico quer te enganar.
O meu eu profundo te distrair.
O meu eu artista vai te revelar.
E eu mesmo nem vou perceber.

Ela era aquela idosa de sempre.
Senhora Agonia que se acostumou
a morar nos meus desalentos
como intrusa por quem se tem
o mais caro e sincero apreço.

quarta-feira, outubro 05, 2011

PREPOSIÇÃO


Esse meu balanço, vai e vem...
Esse coisa morna, cinza e paz...
Grades na janela, abre e fecha...
Umas letras tortas, filho e pai...

Arroz com feijão, pra variar.
Desce a tirolesa que é mais seguro!

O rio morto, seco e salgado.
Minha veia aberta, sístole e diástole...
Olhos já tão cegos e secos depois.

Uma lira dita, nunca e jamais...

sexta-feira, setembro 16, 2011

QUANDO A CASA CAIU


Naquela época, ele construiu uma casa com casca de ovos. Era, talvez, a casa mais bonita das redondezas e a mais exótica, já que todos preferiam construir a suas usando vidro e algodão. A pintura interna foi feita utilizando as gemas enquanto o verniz externo era feito de claras de ovos.

Viveu feliz doze anos naquela casa com sua única filha, mesmo tendo que superar a morta de esposa durante o parto.

Por um capricho do destino, a filha ficou muito doente e também faleceu, fazendo com que o homem não enxergasse mais sentido em viver naquela casa. Porém, havia prometido para a filha durante uma piora em seu quadro que não choraria com sua morte, mas que faria algo para encher, não só a ele, mas outras pessoas de felicidade. Para resolver seu problema e cumprir a promessa que fizera a filha, resolveu destruir a casa. Como? Chamou os amigos mais queridos e deu uma festa.

Todos pulando e dançando ao som de músicas animadas foram pisando nas cascas de ovos do chão e das paredes fazendo um festival de partículas brancas cair e enfeitar por alguns instantes o ar. Foi uma cena realmente memorável para todos e a destruição mais feliz de uma casa que alguém já teve notícias. E é por isso que as casas de hoje são construídas para serem destruídas!

segunda-feira, setembro 12, 2011

AQUELA CASA DE SAL


Uma formiga construindo a Torre Eiffel!
Velocidade qual?
Gotejava minha parca persistência...

Lentamente, a paisagem muda.
Aquela montanha vira planície.
O vulcão violento se extingue.
Célula a célula, a ferida fecha.

Devagar, de tanto vagar,
o caminho encontrou meus pés.

Eu procurava a luz, sem encontrar.
Eu queria um sol fúlgido que ofusca.
Mas era preciso o intermitente vaga-lume.

segunda-feira, setembro 05, 2011

UM INSTANTE DE REVELAÇÃO

Conheci o Beto numa festa. Ele era simplesmente o homem mais lindo que eu tinha visto na minha vida. Sei lá o que deu na minha cabeça, mas eu precisava me aproximar dele de alguma forma. Era algo que eu não entendia bem, a influência que ele tinha sobre mim.

E logo eu, você muito bem sabe, que nunca fui uma mulher romântica. Sempre fui muito prática. Alguns homens até se assustavam, enquanto outros se apaixonavam com meu jeito de ser decidida e prática. O Otávio, por exemplo. Ele me encontrou numa boate e puxou papo comigo, mas nunca esperava ouvir minha resposta firme:

- Que tal você parar de rodeios com perguntas sobre mim e partir logo para o que interessa? Você quer sexo, não é? Eu também! Vamos sair logo daqui?

Posso me lembrar da cara dele de espanto. Quando completamos um ano de namoro, ele me confessou que realmente naquela noite ele só queria sexo, mas quando ele ouviu aquela minha resposta caiu perdidamente apaixonado por mim. E eu tive que confessar que, mesmo um ano depois, o que eu mais queria com ele ainda era sexo mesmo...

Nunca me considerei uma sacana. Longe disso. Eu sempre respeitei homens compromissados, por exemplo, mas com o Beto não deu. Ouvi um amigo brincando sobre a nova namoradinha dele e fiz que não sabia. Como de costume, usei todo meu charme e fugi com ele da festa. Nos amamos no carro dele como loucos, num sexo selvagem e gostoso. Eu nunca quis amor.

Quando você me chamou pra sair hoje, Lucas, fiquei super feliz de poder botar o papo em dia, após três meses distantes um do outro. Afinal somos melhores amigos, né? Só nunca iria imaginar que a namorada do Beto era você, homem de Deus! Quando eu vi você chegar de mãos dadas com ele eu não pude acreditar em tamanha coincidência. Enfim, ele já está voltando do banheiro. Pense o que quiser, faça o que quiser. Eu só precisava te contar isso...

sexta-feira, setembro 02, 2011

VISÃO PANORÂMICA


Um dia essa tempestade passa.
E eu vou ver que lutei muito e muito
para dar apenas dois passos.

Houve muita energia gasta
pra me manter no mesmo lugar.

Minha glória ou minha teimosia?
Uma constrói a outra...
Resta saber se isso matará a minha sede...

quinta-feira, setembro 01, 2011

CADABRA


Ela estava cozinhando. Fazia um almoço trivial. Nem percebia ao certo o que estava fazendo. Estava no modo automático.

Abriu uma gaveta para pegar um garfo e para sua surpresa seu rosto foi banhado de uma luz verde intensa, mas serena. De dentro da gaveta também saíam sons de pássaros cantando, de risadas de crianças, de caixinha de música, de folhas caindo com o vento...

Ela tentou usar os olhos ofuscados por tanto brilho para ver o que havia lá dentro, mas a luz só lhe permitia ver vultos com formas não muito definidas que pareciam dançar.

Sentia-se muito bem com aquele evento. E ela ficou ali olhando a gaveta por tanto tempo que esqueceu do almoço, da fome e da vida.

domingo, agosto 28, 2011

ODE AO FALSO


Ninguém quer a realidade.
Somente um gosto de verossimilhança.
A realidade dói.
E quem não quer só prazer?

A mentira é gentil.
Consolou a todos por 70 vezes 77 anos.
Trouxe o sono tranquilo.
Quem quer encarar?

Quando mortos, falseamos mais,
ao invés da máscara ser enterrada.

E ele é pequeno e desprezível
por ser sincero demais,
por ser coerente demais,
e por achar que a verdade o faria grande.

Venha se esconder.
Porque somos cegos correndo no escuro.

domingo, agosto 21, 2011

sábado, agosto 20, 2011

OS GATOS


Ela estava realmente contente naqueles dias. Havia ganhado uma promoção no serviço na semana anterior e queria muito espalhar sua alegria para todos ao redor. Caminhava pela rua sobre seu salto alto que arrematava sua roupa de executiva de forma tranquila e graciosa. Seus óculos enxergavam mais cores num mundo a ser conquistado. Tanta alegria lhe fez ficar tão nas nuvens a ponto de esquecer a bolsa em casa. Voltou para buscá-la tranquila, afinal estava muito adiantada.

Ao chegar próximo da esquina, notou que havia ali um cego com um gato no colo que parecia aguardar auxílio para a travessia. De pronto, ofereceu-se a conduzi-lo.

- Muito obrigado, moça. Eu preciso ir ao veterinário que fica a dois quarteirões daqui. Eu telefonei para ele e ele disse que sua clínica havia mudado de endereço. Sabe, eu não confio em outro veterinário para levar meu gato.

- Bom eu sempre achei gatos animais fascinantes, mas sou alérgica a seu pelo. Por isso apenas os observo de longe... Os dois conversaram um pouco pelo trajeto até que encontraram o endereço desejado.

Conduziu o cego até o interior da tal clínica, quando o veterinário veio ao encontro dos dois recém chegados.

Era um homem muito bonito, bem alto e que parecia ser um hipnotizador de gatos, pois quando levantou da cadeira onde estava sentado uns quatro ou cinco bichanos o seguiram miando e passando por entre suas pernas:

- Ola, Sr. José. Vejo que não foi difícil encontrar a minha clínica! E esta bela acompanhante é sua filha de quem o senhor tanto fala?

- Não, não. Ela é apenas uma moça gentil que se ofereceu a me guiar até aqui...

Ela sorriu e foi dizendo:

- Bom, você já está entregue, Sr. José. Eu vou andand... Atchim! Atchim!

De repente ela começou a ter uma crise de espirros. Em poucos instantes, porém, começou a sentir uma grande dificuldade de respirar.

O cego percebendo os gemidos surdos que ela emitia, perguntou:

- Está tudo bem? Ela me disse que era alérgica a gatos e, pelos miados, aqui tem vários... O que está acontecendo?

Enquanto o veterinário tentava socorrê-la, ela sentiu que perdia as forças. As vistas foram ficando escuras até que perdera os sentidos de vez. Acordou no hospital com o veterinário ao lado de sua maca.

- Acordou, sua doida! Como você, alérgica a gatos entra na minha clínica veterinária?

- Nossa, eu pensei que, no máximo seriam alguns espirros e quando eu fosse embora estaria tudo bem.

- Mas você teve fechamento de glote. Quase morreu, sabia? E eu nem sabia para quem ligar avisando sobre sua saúde. Você não tinha um documento...

- Pois é! Eu esqueci a bolsa em casa.

Enquanto conversava com ele, percebeu que havia dois gatos, um preto e um branco tentando entrar pela janela fechada da enfermaria. Aquilo lhe causou um leve arrepio e uma sensação ruim, talvez devido ao trauma da experiência passada.

Para afastar o incômodo, decidiu pensar em outra coisa. Ficou imaginando que quem olhasse essa cena sem saber o contexto, julgaria que ela e o veterinário eram namorados e que formavam um belo casal. Depois de um tempo de convivência em que os dois retribuíam gentilezas fazendo visitas e trocando presentes, a impressão de serem um belo casal já não era mais somente uma impressão.

Ele gostava muito dela, era fácil perceber. Ela, porém, tinha algo mais forte por ele. Era um grande fascínio, como se ela também fosse vítima do grande magnetismo que ele tinha sobre os gatos. Ela era irresistivelmente atraída pelo cheiro da pele dele. Ela até pediu que ele não usasse mais perfumes, para não mascarar aquele odor que tanto lhe envolvia.

Mas os gatos eram seus grandes concorrentes nessa predileção. E era preciso literalmente fugir dos gatos, fechar as janelas da casa para eles não entrarem. Afinal, com uma alergia tão séria, ou os gatos saíam de cena ou ela é quem tinha que se retirar.

O romance entre os dois foi ficando cada vez mais intenso e mágico. Fazia duas semanas que estavam juntos e estavam no apartamento dele, que havia feito um jantar bem romântico. Depois do jantar, algumas taças de vinho, muita conversa, risadas, beijos, carícias cada vez mais intensas...

Pela primeira vez amaram-se, ali mesmo no tapete da sala, com gosto, ânsia, desejo e paixão. Seus corpos se encaixavam, seus cheiros se misturavam, suas línguas se confundiam. Ela se soltou como nunca e beijava-o intensamente, segurava-o pela cintura, arranhava de leve suas costas e lambia sua pele dando vazão à febre que a consumia.

Quando estavam saciados, ficaram deitados no tapete por algum tempo. Foi quando ela tomou um susto que a fez gritar, pois viu na janela fechada gatos miando querendo entrar. Eram realmente muitos gatos. Nunca antes havia visto tantos juntos.

Sentiu algo muito ruim, como se os gatos estivesse ordenando que alguém abrisse a janela. Eles tinham algo de sinistro. Num impulso, ela levantou e fechou as cortinas. Decidiu, entretanto, que aquele susto não estragaria aquele momento mágico. Ele a convidou para ficarem deitados na cama, abracados, conversando um pouco. E assim adormeceram.

Ela acordou muito cedo, ainda de madrugada, assustada com um pesadelo que ela teve. O sonho começou repetindo a cena de amor entre os dois no tapete da sala. Porém, num determinado momento, ele começou a lambê-la de uma forma frenética e estranha. Arranhava a pele dela com força, machucando-a. Ele começou a miar e seus olhos se tornaram como de um gato. No susto despertou. Percebeu que seu amado não estava deitado ao seu lado. Foi procurá-lo pela casa pois deveria estar na cozinha ou no banheiro, talvez.

Ao chegar na sala, deparou-se com uma cena terrível: encontrara ele caído no chão de olhos abertos numa expressão de pavor, imóvel, ensanguentado, com marcas de arranhões pelo corpo. Em volta dele, muitos gatos lambendo-o. A janela estava quebrada.

O horror da cena a fez sair correndo. Desceu as escadas e saiu pelas ruas ainda vazias, tomada pelo desespero. Sentia que precisava fugir dali. Enquanto corria, começou a perceber que gatos surgiam de todos os lados e pareciam segui-la. Sentia seus olhos espreitando cada movimento seu.

De repente, um gato saído de um arbustro saltou na direção de seu rosto. Com o susto, ela caiu. Tentou se livrar do gato que a lambia e a arranhava freneticamente. Quanto conseguiu atirá-lo ao longe percebeu que ao seu redor haviam muitos gatos olhando-a fixamente de uma forma quase satânica. Ela ainda caída tentou erguer-se rapidamente, mas quando os gatos pularam em cima dela e começaram a lambê-la e a arranha-la, sentiu uma dificuldade imensa de respirar e uma fraqueza que a fez cair deitada no chão daquela rua vazia novamente. Sua vista foi escurecendo devagar até que já não tinha mais consciência de si.

Quando o sol nascia no horizonte, o barulho habitual dos pássaros e dos carros se misturava a miados de gatos que pareciam vir de todas as direções. Amanhecia um dia
estranhamente assombroso naquela cidade.

terça-feira, agosto 16, 2011

A.B.I.S.M.O.


Afasta o aborrecimento anterior.
Basta uma brisa branda e boa.
Insiste. Inventa a improvável imagem.
Salta sereno sobre a sorte.
Mostra a mente mais madura.
Ousa ouvir outras obras.

Amanhã buscará o íngreme sabor mágico e onírico.

quinta-feira, agosto 04, 2011

O TOQUE

Ele era daquelas pessoas amargas. E o amargo em sua vida era como um remédio para as dores do passado ainda presente.

Não nascera amargo, mas não lembrava mais como ser doce. Isso havia ficado para trás, junto da inocência de um rapaz que veio de uma cidade pequena num pequeno país oriental para tentar uma nova vida na maior cidade do planeta.

Ele havia passado numa seleção e enfim faria o curso que o habilitaria a ser o profissional que tanto sonhava ser. Mas na universidade infelizmente aprendeu mais que as disciplinas do curso. Aprendeu também com a cidade, com os desconhecidos, coisas difíceis de se aprender. Não pela dificuldade em si, mas por serem lições nem sempre muito agradáveis.

Assim seu amargor era como uma terapia homeopática: usava de um princípio semelhante ao que lhe fizera sofrer diluído numa dose muito menor ao longo do seu dia a dia, durante muito tempo.

Há pessoas que tomam doses de remédios maiores do que seria preciso, fazendo mais mal que bem. Há pessoas que abusam da automedicação e cometem suicídio inconsciente ao invés de se curarem porque usam o veneno pensando ser remédio.

O caso dele eu não ouso classificar. Quem mais no mundo poderia entender as dores por ele vividas?

Porém, a vida tem o hábito de trazer algumas surpresas e, numa dessas, ele se curou. Havia perdido a hora e, atrasado dentro do metrô lotado, deu sorte de encontrar um lugar pra sentar.

Estava absorto em pensamentos diversos quando sentiu que sua perna foi tocada por algo. Era o sapato de um menino que estava sentado no colo da mãe na cadeira ao lado. O contato do solado do sapato do garoto com a calça branca dele havia deixado uma marca escura.

Mas aquele fato o fez sentir-se estranhamente bem. Era como se aquele esbarrão significasse, na verdade, um afago em sua alma. Começou a se lembrar que havia tempos que não recebia um toque de alguém. Nem ao menos um toque acidental no metrô, que no horário habitual estava bem mais vazio.

Como era bom sentir que alguém enfim o alcançara. Era como se tivesse chegado o tempo que ele tanto aguardara. O tempo de se libertar da própria prisão. Aquela marca que sujara sua calça parecia externar suas máculas psicológicas. Um esbarrão tirou-lhe da inércia, como a bola branca faz mover as outras bolas do bilhar.

De repente, ele percebeu que estava sorrindo. E, como há muito tempo não o fazia, apenas curtiu o momento. E quando se levantou para descer na sua estação, virou-se para a mãe e a criança ao seu lado e proferiu palavras por ele esquecidas, mas que agora despertavam naturais:

- Com licença!

terça-feira, maio 31, 2011

LENDO AS PESSOAS


Era tão gostoso e ao mesmo tempo tão angustiante aquela situação! Era um jogo no qual eu acabara de entrar e só agora havia me dado conta do que poderia significar aquele momento para mim. Estava lendo pessoas. Mas por mais que desse tudo errado, aquele momento era uma vitória.

Havia 8 anos que minha esposa falecera. Eu, que na época tinha 45 anos, perdi meu chão por completo. Afinal eu era realmente muito apaixonado por ela. Nós nos conhecemos na adolescência e fugimos de casa para viver juntos, com 15 anos. Nossos pais não aceitavam nosso namoro. Tivemos dois dos nossos quatro filhos antes de nos casarmos no cartório. Até que um câncer encerrou lindos 30 anos de convivência.

Pensei que eu nunca mais teria forças para viver, pensei que nunca mais seria feliz, que minha vida estava acabada. Quis me matar e realmente quase morri de tristeza. Fiquei acamado no hospital, doente, e não queria lutar para continuar vivo. Senti que minha hora havia chegado, estava me preparando pra me entregar quando minha filha mais nova entrou no quarto do hospital chorando e me dizendo:

- Pai, não vá embora! Não se entregue! Lute por mim e pelo seu neto! Não sei se vou aguentar sem você e sem a mamãe...

Foi aí que percebi que minha vida não tinha acabado. Eu ainda tinha razões para continuar por aqui. E resolvi viver.

Agora com meu neto fazendo oito anos e minha filha casada, decidi dar uma segunda chance para eu ser feliz. Por que não?

E olha só como são as coisas: conheci uma mulher pela internet! Marcamos de nos encontrar numa livraria. Combinamos o dia, o horário, tudo. Mas na empolgação esquecemos de uma coisa: como eu a reconheceria? E como ela me reconheceria? Não havíamos trocado fotos, não combinamos uma roupa...

Eu só disse a ela que seria uma boa oportunidade de lhe entregar um presente que havia comprado pra ela pelo seu aniversário que havia sido há uma semana. Então, ela poderia me identificar facilmente porque eu era o único na livraria com um presente nas mãos. Mas e como eu saberia quem era ela?

Era tão gostoso e ao mesmo tempo tão angustiante aquela situação! Tinha uma emoção única. Era um jogo no qual eu acabara de entrar e só agora havia me dado conta do que poderia significar aquele momento para mim. Estava lendo pessoas. Tentando decifrar pelos trejeitos das pessoas ao redor se eu conseguiria reconhecer a mulher que se mostrou pra mim apenas por palavras.

E se eu me decepcionasse ao conhecê-la pessoalmente? Era algo possível de acontecer. Mas por mais que desse tudo errado, aquele momento era uma vitória. Era o marco que me mostrava que a vida ganhou outro sentido pra mim. Eu procurava outras pessoas pela vida. Outras páginas para ler. Podia me deliciar da possibilidade de estar vivo. Lendo novas páginas que se escreviam em mim.

Olhando cada gesto ao redor, eu lia as pessoas, seus pensamentos, suas histórias. E lia uma parte de mim que eu achei que tinha morrido. Aquele encontro numa livraria era a prova de que eu havia virado a página.

sexta-feira, abril 29, 2011

QUANDO FALTA...


Quando o rio resolve não correr mais
quando o ponteiro do relógio congela,
quando as ondas do mar ficam no mesmo lugar,
quando a brisa para de soprar,
quando as gotas de chuva ficam suspensas no ar,
quando a respiração espera um instante,
quando a pedra para de criar limo,
quando o tempo para, enfim, e a eternidade
é a semana toda...


Então eu percebo que o tempo ficou veloz,
que eu envelheci muito mais do que eu devia,
que está tudo em câmera acelerada,
que as lesmas correm a 300km/h...


Um paradoxo que me leva
como se o vento soprasse a poeira na direção que ele quer
e eu apenas sou arrastado,
frágil como uma pluma,
nas veias da minha falta de pulso.

quarta-feira, abril 13, 2011

A PORTA MÁGICA


Ela passava todo dia na mesma biblioteca. Estava fazendo sua monografia e precisava a todo momento de consultas bibliográficas. Passava horas pelos corredores de estantes cheias de livro se perdendo num mundo maravilhoso e silencioso de capas, letras, papel...

Há alguns dias ela havia reparado que no fundo de um dos corredores havia uma porta de madeira imponente que contrastava com o estilo arquitetônico da biblioteca.

Aquela porta a deixava muito curiosa. Por que era tão diferente de tudo ali? O que haveria por detrás dela? Algumas vezes ela jurava que saiam luzes coloridas pelas frestas da tal porta. É claro que aquilo não fazia sentido e devia ser apenas algum reflexo do que havia em seu interior. Outras vezes, ela tentava chegar mais perto para checar o estranho fenômeno mas, quando o fazia, as luzes sumiam.

Uma vez, vencida pela própria curiosidade, decidiu perguntar a um funcionário da biblioteca sobre tal porta. A que ela dava acesso? Para sua surpresa, o funcionário disse que não existia tal porta, que ela poderia estar se confundindo. Ela, após tantas vezes encontrar a tal porta, disse estar certa de sua existência. E tanto fez que conseguiu convencer o funcionário a segui-la pra ela lhe mostrar de qual porta falava.

Mas qual era mesmo o corredor em que ficava tal porta? A biblioteca era enorme! Ela tinha quase certeza que era um dos últimos. Rodou e rodou com o funcionário atrás dela e não a encontrou. O funcionário, suspeitando que conversava com alguém que não estava em sanidade mental perfeita, disse que tinha muito a fazer e foi embora.

Aquilo a deixou mais encucada: onde ficava mesmo tal porta? Teria se confundido? Resolveu deixar as questões para depois, afinal tinha muito trabalho a realizar...

No outro dia, estava num corredor quando reparou a tal porta ao fundo. Pensou em chamar o tal funcionário, mas resolveu deixar pra lá. Apenas anotou mentalmente: a tal porta fica no corredor de livros sobre psicologia. Uma semana depois procurava outro livro, desta vez de sociologia, e se surpreendeu mais uma vez: a porta estava lá! Mas como era possível? Tinha certeza de que a havia visto no corredor de psicologia? E agora ela estava lá no de sociologia... Como poderia ser? A tal porta mudara de lugar?

Aquilo tudo estava ficando muito misterioso. Ela resolveu contar para o seu analista sobre o episódio da tal porta, desta vez preocupada com a própria saúde mental. Ele disse apenas que ela estava cansada por causa da monografia e poderia ter se confundido. Mas, que se ela quisesse ter certeza de que não estava ficando louca, que voltasse até o tal corredor e confirmasse a existência de tal porta. Quem sabe até matar sua curiosidade de saber o que havia atrás da porta, caso não houvesse um aviso de acesso restrito ou não estivesse trancada, claro...

Quando ela voltou na biblioteca, não conseguiu localizar a porta. Não estava nem no corredor de psicologia, nem no de sociologia, nem em nenhum outro por perto. A resposta só podia ser uma: estava realmente tendo alucinações. Preparou-se para relatar o fato ao analista na próxima sessão, daqui a uma semana. Mas três dias depois, procurando outro livro no corredor de antropologia, viu a tal porta com as luzes coloridas escapando por entre as frestas. Resolveu acabar com aquele mistério de uma vez: checaria o que escondia tal porta.

A cada passo que dava na direção dela, parecia que as luzes ficavam mais fortes. Ela continuou caminhando até que, quando estava apenas a dois metros da porta, a porta se abriu sozinha. Havia tantas luzes coloridas em seu interior que não dava pra ver o que havia do outro lado. Era preciso chegar mais perto...

Ela pensou que se havia chegado até ali não poderia recuar. Entrou na porta, curiosa e com um pouco de receio, quando a porta se fechou atrás de si. Ela tentou abri-la para sair, mas não conseguiu. As luzes coloridas, cada vez mais fortes, banhavam-lhe cada poro de sua pele, e ficaram tão forte até ofuscar-lhe a visão. Nunca mais foi vista, desde então.

sábado, janeiro 29, 2011

CANÇÃO DO NOVO DIA


Ela levava o sol
para passear de manhã.

Abria os braços e sorria
para a nuvem brincalhona
que num esconde-esconde sem fim
se camuflava de elefantes e ursos.

No canteiro, uma florzinha do campo
sorria pelo orvalho translúcido.

Amanhecia um novo ano.