domingo, agosto 28, 2011

ODE AO FALSO


Ninguém quer a realidade.
Somente um gosto de verossimilhança.
A realidade dói.
E quem não quer só prazer?

A mentira é gentil.
Consolou a todos por 70 vezes 77 anos.
Trouxe o sono tranquilo.
Quem quer encarar?

Quando mortos, falseamos mais,
ao invés da máscara ser enterrada.

E ele é pequeno e desprezível
por ser sincero demais,
por ser coerente demais,
e por achar que a verdade o faria grande.

Venha se esconder.
Porque somos cegos correndo no escuro.

domingo, agosto 21, 2011

sábado, agosto 20, 2011

OS GATOS


Ela estava realmente contente naqueles dias. Havia ganhado uma promoção no serviço na semana anterior e queria muito espalhar sua alegria para todos ao redor. Caminhava pela rua sobre seu salto alto que arrematava sua roupa de executiva de forma tranquila e graciosa. Seus óculos enxergavam mais cores num mundo a ser conquistado. Tanta alegria lhe fez ficar tão nas nuvens a ponto de esquecer a bolsa em casa. Voltou para buscá-la tranquila, afinal estava muito adiantada.

Ao chegar próximo da esquina, notou que havia ali um cego com um gato no colo que parecia aguardar auxílio para a travessia. De pronto, ofereceu-se a conduzi-lo.

- Muito obrigado, moça. Eu preciso ir ao veterinário que fica a dois quarteirões daqui. Eu telefonei para ele e ele disse que sua clínica havia mudado de endereço. Sabe, eu não confio em outro veterinário para levar meu gato.

- Bom eu sempre achei gatos animais fascinantes, mas sou alérgica a seu pelo. Por isso apenas os observo de longe... Os dois conversaram um pouco pelo trajeto até que encontraram o endereço desejado.

Conduziu o cego até o interior da tal clínica, quando o veterinário veio ao encontro dos dois recém chegados.

Era um homem muito bonito, bem alto e que parecia ser um hipnotizador de gatos, pois quando levantou da cadeira onde estava sentado uns quatro ou cinco bichanos o seguiram miando e passando por entre suas pernas:

- Ola, Sr. José. Vejo que não foi difícil encontrar a minha clínica! E esta bela acompanhante é sua filha de quem o senhor tanto fala?

- Não, não. Ela é apenas uma moça gentil que se ofereceu a me guiar até aqui...

Ela sorriu e foi dizendo:

- Bom, você já está entregue, Sr. José. Eu vou andand... Atchim! Atchim!

De repente ela começou a ter uma crise de espirros. Em poucos instantes, porém, começou a sentir uma grande dificuldade de respirar.

O cego percebendo os gemidos surdos que ela emitia, perguntou:

- Está tudo bem? Ela me disse que era alérgica a gatos e, pelos miados, aqui tem vários... O que está acontecendo?

Enquanto o veterinário tentava socorrê-la, ela sentiu que perdia as forças. As vistas foram ficando escuras até que perdera os sentidos de vez. Acordou no hospital com o veterinário ao lado de sua maca.

- Acordou, sua doida! Como você, alérgica a gatos entra na minha clínica veterinária?

- Nossa, eu pensei que, no máximo seriam alguns espirros e quando eu fosse embora estaria tudo bem.

- Mas você teve fechamento de glote. Quase morreu, sabia? E eu nem sabia para quem ligar avisando sobre sua saúde. Você não tinha um documento...

- Pois é! Eu esqueci a bolsa em casa.

Enquanto conversava com ele, percebeu que havia dois gatos, um preto e um branco tentando entrar pela janela fechada da enfermaria. Aquilo lhe causou um leve arrepio e uma sensação ruim, talvez devido ao trauma da experiência passada.

Para afastar o incômodo, decidiu pensar em outra coisa. Ficou imaginando que quem olhasse essa cena sem saber o contexto, julgaria que ela e o veterinário eram namorados e que formavam um belo casal. Depois de um tempo de convivência em que os dois retribuíam gentilezas fazendo visitas e trocando presentes, a impressão de serem um belo casal já não era mais somente uma impressão.

Ele gostava muito dela, era fácil perceber. Ela, porém, tinha algo mais forte por ele. Era um grande fascínio, como se ela também fosse vítima do grande magnetismo que ele tinha sobre os gatos. Ela era irresistivelmente atraída pelo cheiro da pele dele. Ela até pediu que ele não usasse mais perfumes, para não mascarar aquele odor que tanto lhe envolvia.

Mas os gatos eram seus grandes concorrentes nessa predileção. E era preciso literalmente fugir dos gatos, fechar as janelas da casa para eles não entrarem. Afinal, com uma alergia tão séria, ou os gatos saíam de cena ou ela é quem tinha que se retirar.

O romance entre os dois foi ficando cada vez mais intenso e mágico. Fazia duas semanas que estavam juntos e estavam no apartamento dele, que havia feito um jantar bem romântico. Depois do jantar, algumas taças de vinho, muita conversa, risadas, beijos, carícias cada vez mais intensas...

Pela primeira vez amaram-se, ali mesmo no tapete da sala, com gosto, ânsia, desejo e paixão. Seus corpos se encaixavam, seus cheiros se misturavam, suas línguas se confundiam. Ela se soltou como nunca e beijava-o intensamente, segurava-o pela cintura, arranhava de leve suas costas e lambia sua pele dando vazão à febre que a consumia.

Quando estavam saciados, ficaram deitados no tapete por algum tempo. Foi quando ela tomou um susto que a fez gritar, pois viu na janela fechada gatos miando querendo entrar. Eram realmente muitos gatos. Nunca antes havia visto tantos juntos.

Sentiu algo muito ruim, como se os gatos estivesse ordenando que alguém abrisse a janela. Eles tinham algo de sinistro. Num impulso, ela levantou e fechou as cortinas. Decidiu, entretanto, que aquele susto não estragaria aquele momento mágico. Ele a convidou para ficarem deitados na cama, abracados, conversando um pouco. E assim adormeceram.

Ela acordou muito cedo, ainda de madrugada, assustada com um pesadelo que ela teve. O sonho começou repetindo a cena de amor entre os dois no tapete da sala. Porém, num determinado momento, ele começou a lambê-la de uma forma frenética e estranha. Arranhava a pele dela com força, machucando-a. Ele começou a miar e seus olhos se tornaram como de um gato. No susto despertou. Percebeu que seu amado não estava deitado ao seu lado. Foi procurá-lo pela casa pois deveria estar na cozinha ou no banheiro, talvez.

Ao chegar na sala, deparou-se com uma cena terrível: encontrara ele caído no chão de olhos abertos numa expressão de pavor, imóvel, ensanguentado, com marcas de arranhões pelo corpo. Em volta dele, muitos gatos lambendo-o. A janela estava quebrada.

O horror da cena a fez sair correndo. Desceu as escadas e saiu pelas ruas ainda vazias, tomada pelo desespero. Sentia que precisava fugir dali. Enquanto corria, começou a perceber que gatos surgiam de todos os lados e pareciam segui-la. Sentia seus olhos espreitando cada movimento seu.

De repente, um gato saído de um arbustro saltou na direção de seu rosto. Com o susto, ela caiu. Tentou se livrar do gato que a lambia e a arranhava freneticamente. Quanto conseguiu atirá-lo ao longe percebeu que ao seu redor haviam muitos gatos olhando-a fixamente de uma forma quase satânica. Ela ainda caída tentou erguer-se rapidamente, mas quando os gatos pularam em cima dela e começaram a lambê-la e a arranha-la, sentiu uma dificuldade imensa de respirar e uma fraqueza que a fez cair deitada no chão daquela rua vazia novamente. Sua vista foi escurecendo devagar até que já não tinha mais consciência de si.

Quando o sol nascia no horizonte, o barulho habitual dos pássaros e dos carros se misturava a miados de gatos que pareciam vir de todas as direções. Amanhecia um dia
estranhamente assombroso naquela cidade.

terça-feira, agosto 16, 2011

A.B.I.S.M.O.


Afasta o aborrecimento anterior.
Basta uma brisa branda e boa.
Insiste. Inventa a improvável imagem.
Salta sereno sobre a sorte.
Mostra a mente mais madura.
Ousa ouvir outras obras.

Amanhã buscará o íngreme sabor mágico e onírico.

quinta-feira, agosto 04, 2011

O TOQUE

Ele era daquelas pessoas amargas. E o amargo em sua vida era como um remédio para as dores do passado ainda presente.

Não nascera amargo, mas não lembrava mais como ser doce. Isso havia ficado para trás, junto da inocência de um rapaz que veio de uma cidade pequena num pequeno país oriental para tentar uma nova vida na maior cidade do planeta.

Ele havia passado numa seleção e enfim faria o curso que o habilitaria a ser o profissional que tanto sonhava ser. Mas na universidade infelizmente aprendeu mais que as disciplinas do curso. Aprendeu também com a cidade, com os desconhecidos, coisas difíceis de se aprender. Não pela dificuldade em si, mas por serem lições nem sempre muito agradáveis.

Assim seu amargor era como uma terapia homeopática: usava de um princípio semelhante ao que lhe fizera sofrer diluído numa dose muito menor ao longo do seu dia a dia, durante muito tempo.

Há pessoas que tomam doses de remédios maiores do que seria preciso, fazendo mais mal que bem. Há pessoas que abusam da automedicação e cometem suicídio inconsciente ao invés de se curarem porque usam o veneno pensando ser remédio.

O caso dele eu não ouso classificar. Quem mais no mundo poderia entender as dores por ele vividas?

Porém, a vida tem o hábito de trazer algumas surpresas e, numa dessas, ele se curou. Havia perdido a hora e, atrasado dentro do metrô lotado, deu sorte de encontrar um lugar pra sentar.

Estava absorto em pensamentos diversos quando sentiu que sua perna foi tocada por algo. Era o sapato de um menino que estava sentado no colo da mãe na cadeira ao lado. O contato do solado do sapato do garoto com a calça branca dele havia deixado uma marca escura.

Mas aquele fato o fez sentir-se estranhamente bem. Era como se aquele esbarrão significasse, na verdade, um afago em sua alma. Começou a se lembrar que havia tempos que não recebia um toque de alguém. Nem ao menos um toque acidental no metrô, que no horário habitual estava bem mais vazio.

Como era bom sentir que alguém enfim o alcançara. Era como se tivesse chegado o tempo que ele tanto aguardara. O tempo de se libertar da própria prisão. Aquela marca que sujara sua calça parecia externar suas máculas psicológicas. Um esbarrão tirou-lhe da inércia, como a bola branca faz mover as outras bolas do bilhar.

De repente, ele percebeu que estava sorrindo. E, como há muito tempo não o fazia, apenas curtiu o momento. E quando se levantou para descer na sua estação, virou-se para a mãe e a criança ao seu lado e proferiu palavras por ele esquecidas, mas que agora despertavam naturais:

- Com licença!